Flavio Cruz

O Profeta Mudo


 

Eis que ficarás mudo e não poderás falar até o dia
em que estas  3  coisas acontecerem,
visto que não deste crédito às minhas palavras,
que se hão de cumprir a seu tempo.
Lucas: 1-18,19,20.
 
Não dizem que “para baixo todo santo ajuda”? No caso de Eduardo o dito popular foi cumprido à risca. Ele tinha emprego bom, namorada bonita, alugava um belo apartamento – pequeno mas bom e simpático – e era feliz. Pois bem, primeiro ele perdeu o emprego e dali a dez dias a namorada. Não vou ser cínico a ponto de afirmar que uma coisa tem a ver com a outra. Cada um que tire suas próprias conclusões. Para não cairmos em desgraça com as mulheres por acharmos que elas só ficam com os homens por dinheiro, vamos usar outro ditado popular – “desgraça pouca é bobagem” - e assim não precisamos entrar em considerações metafísicas. Além disso, de qualquer forma foi melhor para ele. Ter uma namorada e estar sem emprego ao mesmo tempo não é ter uma namorada, é ter um problema. Houve outras pequenas desgraças a seguir, mas nem vou mencioná-las pois fazem parte do pacote. O fato é que três meses depois Eduardo estava sendo despejado e teve de, humildemente, ir morar com uma tia da qual não gostava. Não foi tão trágico assim pois durou pouco. Uma manhã, quando os tios pensavam que ele estava dormindo, ele ouviu umas lamentações do casal. Até quando será que ele vai ficar? Assim não dá mais, onde se viu um marmanjo desses morar com parentes? Eduardo estava na pior mas ainda não tinha chegado ao nível mais baixo. Juntou o restinho de orgulho, juntou também as poucas roupas que tinha, pôs tudo numa pequena mala e se foi. No mesmo dia, à tarde, começou a sentir uma dor na garganta. Podia usar mais um ditado popular para isso mas não vou abusar. Afinal de contas o que Eduardo tinha era um tumor, embora benigno, e por isso aquela dor horrível: tudo estava comprimido na garganta. Tinha dinheiro para uma ou duas noites numa pensão vagabunda. Andou pela avenida com sua maleta, pensando na vida.
Quando colocou a mão no queixo percebeu que sua barba tinha crescido muito. Talvez fosse melhor assim, pois quando tivesse que dormir na calçada, ficaria mais difícil alguém reconhecê-lo. Raciocinou que aquele dia tinha sido tão horrível que nem merecia ser terminado com uma noite na cama. Resolveu economizar os trocos que tinha para comer no dia seguinte, que diabos, que importância tinha dormir na calçada? Encostou no muro, estava calor, não haveria problema. Roubado não podia ser, não havia nada a ser roubado a não ser suas dívidas. Não posso dizer que dormiu bem – não se dorme bem na rua – mas dormiu pesado e só acordou no dia seguinte de manhã, com o sol no rosto. Antes de abrir os olhos ficou refletindo sobre a rapidez como as coisas aconteceram. Ainda bem que seus pais moravam longe, coitados. Nem podia imaginar a vergonha que iriam sentir. Puxa, tinha chegado no final do poço, não podia baixar mais. Este pensamento durou pouco. Quando abriu os olhos e viu a seu lado dois ou três trocados, viu que dava para baixar mais sim: ele acabara de ser rebaixado para mendigo. Verdade era também que com aquele dinheiro poderia comer um pouco mais...
Não tinha coragem de se levantar ou talvez não tivesse forças. Lembrou-se de amigos que nunca davam esmolas pois achavam que quem mendigava era vagabundo. Ainda bem que ele não era um desses pois agora estava do outro lado e estava vendo como se sentia um legítimo sem-teto, sem-terra, sem-nada. Estava com vontade de fazer xixi mas não tinha forças para se levantar. Ficou lá um bom tempo e mais duas notas foram jogadas a seu lado. Resolveu recolhê-las antes que alguém se “engraçasse” com elas. Ao colocá-las no bolso, no entanto, sentiu o peso da responsabilidade. Agora era oficialmente um mendigo.  Ainda estava a fazer essas considerações, quando alguém que estava passando, parou e olhou fixamente para ele.
O estranho agachou-se e o examinava, como se tentasse reconhecê-lo. Ele não queria ser reconhecido e por isso tentou virar o rosto. O fulano, porém, era insistente. De repente aconteceu o que ele não queria: estava sendo chamado pelo nome:
-Eduardo? Eduardo?
Eduardo lembrava-se vagamente da fisionomia. Devagarinho o rosto foi ficando mais familiar. Era um colega de faculdade. Agora se lembrava melhor. Era um gozador, um fulano debochado, às vezes arrogantes.
A essa altura seria bom você saber qual a profissão de Eduardo. Ele era um advogado recém-formado e trabalhava numa grande firma de advocacia quando foi demitido no começo desta história. Na verdade eu estava omitindo outra parte importante das desgraças sofridas por Eduardo: aquela firma teria sido o seu treinamento para mais tarde ter seu próprio escritório. Bem, aquele indivíduo ali na frente também era advogado e, pela sua aparência, não estava se dando bem. Outra coincidência, Eduardo acabara de se lembrar: ele também se chamava Eduardo. Nosso Eduardo, o primeiro, chegou à conclusão de que não adiantava ficar “enrolando” e resolveu admitir para o segundo Eduardo que ele era o Eduardo que ele pensava que ele era. Havia um problema, porém. A voz não saía. O problema que ele tinha, havia se agravado e ele estava mudo.
O recém chegado explicou que morava ali perto. Que não era bom ele estar ali e que deviam ir para seu apartamento. Era daqueles tipos convincentes e que não aceitam recusa. Quando nosso Eduardo chegou ao apartamento de seu xará imediatamente percebeu que ele também não estava bem das pernas. Chegou a pensar que ele queria dar um golpe, chegou a ficar desconfiado. Mas depois de pensar um pouco, novamente se lembrou de que não havia nada a ser roubado. Tomou um banho e depois tomaram umas cervejas embora sua garganta estivesse doendo muito. Eduardo sabia que seu companheiro estava tramando algo, podia sentir. Ouviu bastante antes dormir, pois ouvir era a única coisa que podia fazer.
No dia seguinte, Eduardo escreveu para seu companheiro – já que não podia falar – que precisava de um barbeador. Para sua surpresa, seu companheiro disse que não podia cortar a barba, pois iriam precisar dela. Agora era certeza: Eduardo - o segundo – estava “aprontando” alguma. No entanto, ele não se abriu. Nos dias seguintes, os dois “Eduardos” ficaram em casa. Um suspeitando, outro trabalhando como um louco com papéis, com o computador. No terceiro dia, de manhã, o segundo Eduardo, que a partir de agora vamos chamar pelo seu sobrenome, Alves, para evitar confusão, chegou perto de Eduardo e falou:
-Está vendo essa sua barba?
Alves colocou um espelho na frente de Eduardo. Realmente a barba estava enorme. Daí, ele continuou:
-Nós vamos faturar com essa barba. Vem comigo.
O Alves pegou um vaso chinês que estava em cima da mesa, despejou dentro o conteúdo de um saco plástico que tirou de dentro da gaveta. Depois foi até seu quarto e voltou com uma túnica branca. Eduardo não estava entendendo nada e como não podia falar, gesticulava. Foi aí que Alves falou algo que o deixou mais confuso:
-Você é o “profeta mudo”. Nós dois precisamos de grana, certo?
Eduardo não entendeu nada mas foi junto com ele. A praça não era longe. Lá chegando, colocou o vaso no chão, uma espécie de pequena urna ao lado e posicionou Eduardo com sua túnica branca logo atrás. Ficou em pé a seu lado e começou a tocar um pequeno sino que tinha mão esquerda. Com a mão direita começou a chamar as pessoas que passavam.
Não demorou até que três ou quatro pessoas compareceram. Alves então anunciou o seu profeta.
-Este é o “profeta mudo”. Ele não fala pois há muita gente falando no mundo, mas o que eles falam são mentiras. Nosso profeta só transmite a verdade e porque é a verdade, ela vem escrita. Coloquem suas mãos dentro do vaso e retirem sua mensagem. Não é necessário pagar. A verdade não tem preço.
Na urna destinada a doações havia um aviso: “Doe o que seu coração está dizendo. Considere o valor da verdade na mensagem que você está recebendo do profeta mudo.” Logo a seguir, as pessoas começaram a retirar os papeizinhos. Era irresistível. As pessoas liam com cuidado as mensagens, andavam um pouco, remexiam nas carteiras ou nas bolsas e voltavam. Quase todos colocavam “doações” na urna. Daí Alves repetia a cena e mais gente chegava.
Eduardo chegou a sentir vergonha pelo que seu companheiro e ele estavam fazendo mas ao mesmo tempo estava atônito e, sabe, todo aquele dinheiro entrando...Não passou uma hora para que o Alves notasse que as pequenas mensagens estavam acabando e que a urna estava cheia. Parou de tocar o sino e assim que teve uma chance, recolheu tudo e puxou Eduardo pelo braço. Chegando ao apartamento, comentou com o Eduardo:
Calculei mal. Tinha de fazer dez vezes mais papeizinhos...
Eduardo não conseguia falar mas não se conteve e escreveu num papel: “O que você fez? O que está escrito naqueles papeis?
Alves deu uma gargalhada e disse:
-O que as pessoas gostam de ouvir. Além disso, coisas que só fazem bem...
Diante da cara de interrogação do Eduardo, Alves explicou melhor:
-Que nessa semana ele vai receber uma boa notícia, que ele acabou de se livrar de uma grande desgraça que ele nem sabia que ia acontecer, que o câncer que tinha começado a se desenvolver sem seu conhecimento estava curado e ele poderia fazer um exame já, frases mágicas da Bíblia e um monte de mensagens que tirei em “biscoitos da sorte” ...Você sabe, aqueles de restaurantes chineses.
Eduardo estava boquiaberto. Alves completou:
-Não falha...Todo mundo fica feliz...
Eduardo achou que não era uma boa fazer aquilo. No entanto fez mais uma vez. Desta vez a urna era muito maior assim como o vaso de mensagens. Ficaram algumas horas lá e arrecadaram uma quantidade enorme de dinheiro. Então Eduardo concordou em fazer mais uma...e mais uma...
A essa altura, Eduardo já se acostumara e estava aprimorando. Fazia gestos lentos e solenes, olhava para o céu e estava caprichando na barba. A sua túnica era de um branco imaculado. Mudavam de lugar constantemente, iam para lugares diferentes da cidade, havia pessoas que os seguiam. O dinheiro era muito bom. Um dia aconteceu algo ainda mais extraordinário. Um senhor muito distinto aproximou-se, ajoelhou-se diante do profeta mudo e balançou a cabeça várias vezes. Depois dirigiu-se à urna e jogou lá dentro um envelope. Assim que teve uma chance, o Alves não resistiu e foi lá “xeretar”. Olhou dos lados, não havia ninguém e abriu o envelope. Quase caiu de costas. Eduardo perdeu sua postura de profeta e quis ver o cheque também. Havia vários zeros...Dava para comprar umas duas casas boas!
Juntaram tudo e foram para o apartamento. Mal podiam crer. Sentaram-se no sofá. Tomaram champanhe e fizeram planos. Uma das coisas que discutiram era se continuariam ou não. Havia riscos e agora tinham dinheiro, mas sabe...
Eduardo pensou, pensou...Depois olhou para a urna e teve uma ideia. Que tal experimentar do próprio remédio e tentar a sorte dos bilhetinhos?  Enfiou a mão lá dentro e tirou uma mensagem que dizia; “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu...tempo de estar calado, e tempo de falar; (Eclesiastes 3)
Imediatamente sentiu em seu coração que era "tempo de falar “e deixar de ser mudo. Mas quis saber mais...Tirou outro: “Pois, que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma?” (Marcos 8:36). Daí então, Eduardo sentiu um calafrio...
Nesse momento Alves advertiu que o objetivo da mensagem era fazer com que o leitor separasse uma boa parte do que ganhara e doasse para eles...a mensagem não era para ele, Eduardo... (que idiota!)
Aí então, Eduardo retirou um terceiro bilhete das suas próprias profecias e ele dizia: “Saiba quando é o momento de parar. Dinheiro não é tudo.” Aquilo foi demais para o coração de Eduardo. Para Alves, entretanto, o objetivo da mensagem era obviamente outro. Não houve jeito, Eduardo fora vítima de suas próprias profecias. Ele estava mudo mas não era cego. Alves não teve outra alternativa senão a de concordar. Pararam com a história do “Profeta Mudo”. Tenho certeza, muita gente sentiu falta. Sem querer abusar de ditados populares, podemos dizer que “o silêncio é de ouro” ou até talvez que “em boca fechada não entra mosca.”
Bom, como eu disse antes, ambos eram advogados, embora deva confessar que eram bem “fraquinhos” ... Com o dinheiro que tinham, abriram um escritório de advocacia e, com a sorte que estavam, conseguiram um contrato com uma associação de “proteção ao consumidor” (que ironia!). Ficaram ainda mais ricos apesar da malandragem do Alves e do azar de Eduardo. Mas quem disse que a vida é justa? Agora para terminar, não consigo resistir e vou usar mais uma daquelas frases feitas: “... e viveram felizes para sempre...”

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Published on e-Stories.org on 07/29/2015.

 
 

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