Flavio Cruz

O Sorriso da Tia Sílvia

Quando eu era pequeno – nos gloriosos anos 60 – não havia muita coisa para a meninada fazer:  praticamente não havia televisão e a Internet ainda não aparecia nem nos projetos de ficção científica. Por não haver nada, tínhamos de imaginar e fazer tudo. É claro que havia os eventos especiais. Volta e meia um parque de diversões ou um circo aparecia pela cidade. Eram sempre mambembes mas para nós eles eram o máximo. O duro era conseguir os trocados necessários para as entradas. No entanto sempre dávamos um jeito. Os filhos dos privilegiados que tinham um bom emprego simplesmente pediam para os pais. Outros, como eu, inventavam alguma coisa como vender pinhão cozido na entrada do circo. Eu me lembro que a medida era uma latinha de tomate vazia. Não me lembro por quanto vendia o pinhão mas uns dois dias de trabalho eram mais do que suficientes. Era uma época memorável. Tudo desde o momento em que os caminhões encostavam para descarregar o equipamento, o pessoal se mexendo para arrumar, até o dia do primeiro espetáculo. Depois eles iam embora e tudo voltava ao normal. Para os dias normais, no entanto, nós tínhamos os gibis. O Fantasma, o Zorro, o Homem Aranha, o Rocky Lane, nossa que variedade!  E o Mandrake então? Era um dos favoritos. Claro que não havia dinheiro para tudo isso, trocávamos, emprestávamos, dávamos um jeito. Nesse aspecto eu era um felizardo. Na casa de minha tia Sílvia havia centenas de gibis. Também ela tinha 5 filhos homens, até que dava para entender. A casa dela não era muito perto mas eu sempre dava um jeito para chegar até lá. Caixas e caixas de gibis. Um tesouro incalculável. Ah! Os almanaques!  

Eu mergulhava nas capas, nas histórias, lia e me deliciava. Ela sempre precisava me mandar embora, pois mãe que era, sabia que a minha iria se preocupar e naquela época nem pensar em telefone. Celular então...seria esquisito até em filme de ficção.  Mas tudo que tia Sílvia fazia, ela fazia com um sorriso. Aliás, ela estava sempre sorrindo. Não sei o que foi que Deus fez – quando a fez – que a fez com um sorriso permanente. E vou dizer, aquele sorriso era bonito, gostoso, suave e não dá para esquecer. Transmitia uma paz, uma serenidade que nunca mais vi em pessoa nenhuma. E agora eu sei, ela sofria como os outros, mas sorria como ninguém, não sei como ela conseguia. Você nem pode imaginar como tenho saudades daquele sorriso. Se eu pudesse fazer um livro da minha infância, a capa seria a foto com o rosto colorido da tia Sílvia sorrindo... Deus caprichou naquele sorriso.

Nunca mais a vi. Agora que já cresci e penso melhor, fico pensando se, na verdade, a principal razão de eu ir até lá era o sorriso e não os gibis. E olha que os gibis eram importantíssimos. O fato é que ainda hoje sinto saudades daquele sorriso, o sorriso da minha tia Sílvia.

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Published on e-Stories.org on 06/06/2015.

 
 

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