Flavio Cruz

Morada das Flores, uma cidade como nenhuma outra


Maurício olhou para o teto e estranhou, por alguns segundos, o que estava vendo. Aquele não era o lustre de seu quarto, aquela não era sua cama. Aos poucos, seu cérebro foi se reajustando. Morada das Flores, interior do estado, casa do amigo Sérgio... Cansado, deprimido, estava precisando de férias. O bom amigo sugeriu que ele fosse para o interior na casa que era de seus pais. “Você vai se esquecer da vida”, disse o Sérgio quando lhe entregou as chaves. Duas horas e meia de viagem e lá estava ele, tarde da noite. O amigo tinha pensado em tudo. Tinha pedido para a dona Rosa limpar a casa, fazer um lanche de boas-vindas e deixar tudo pronto para um bom café da manhã.
Assim que se lembrou de tudo, percebeu que estava com fome. Banho rápido, roupas leves, fez o café. Enquanto comia, estava pensando no que ia fazer. Conhecia um pouco da cidade. Tinha vindo duas vezes com o Sérgio quando os pais dele ainda eram vivos e lá viviam. Tinha ficado com uma ótima impressão. Todos eram muito gentis e sorridentes. Ajudava o fato de que seus anfitriões eram pessoas amadas na cidade. Até se lembrava de alguns nomes.
Boa ideia. Iria andar pela Rua das Dálias - a principal -  até onde ela terminasse. Conversar um pouco, quem sabe até comprar alguma coisinha. Precisava dar um chute preciso e definitivo naquela depressão que começava a ameaçá-lo de uma maneira mais séria.
Saiu, apenas encostou a porta: não se sabe de roubos na cidade desde sempre.  Decidiu ir para a direita. Mal andou alguns passos e alguém sorridente lhe mandou um olá e um vigoroso aceno de mão. Mais alguns passos e outro aceno por trás das vidraças. Mais surpreso ele ficou quando alguém lhe disse: “Bem-vindo, tenha uma boa estadia na Morada das Flores, Júnior”!  Achou simpático, mas estranhou alguém chamá-lo assim: nem sequer tinha Júnior no nome. Talvez o tivessem confundido com alguém. De qualquer forma, fazia anos que não visitava o lugar. Ninguém tinha obrigação de se lembrar.
Maurício não se importou muito com aquilo e continuou sua caminhada. Estar ali era melhor que qualquer remédio, que qualquer médico! Não demorou muito para vir aquela parte onde havia algumas lojas, alguns cafés. Sempre havia gente matando tempo por ali. Mal viu as primeiras mesas e alguém o chamou:
-Júnior, senta aqui com a gente!
Antes que pudesse conjeturar sobre o fato de que o estavam chamando novamente de Júnior, um homem de bigode, simpático, levantou-se, veio a seu encontro e puxou-o para a mesa:
Conversaram com ele como se ele estivesse na cidade há muito tempo. Contaram novidades sem importância, riram muito das piadas do Andrade - o homem de bigode -  falaram até do sermão do pastor Jônatas, do qual ele se lembrava vagamente. Era como se ele tivesse estado sempre ali. Essa sensação só foi embora quando perguntaram sobre o Sérgio, seu amigo e, obviamente amigo deles. Estava muito bem, obrigado. Por algum motivo, Maurício sentia que alguma coisa não fazia sentido, embora continuasse se sentindo muito bem, muito feliz. Foi então que quis esclarecer algo:
-Eu não sei por que vocês me chamam de Júnior, meu nome é Maurício. Vocês sabem disso, não sabem?
Eles se entreolharam rapidamente como se não estivessem entendendo a pergunta e antes que Maurício pudesse ir fundo ao assunto, alguém chamava do outro lado da rua dizendo que o almoço estava pronto. Convidaram o Maurício, mas ele tinha acabado de tomar café e, além disso, queria andar mais. E assim continuou. Sem exceção, todas as pessoas que passavam por ele, o cumprimentavam efusivamente: homens, mulheres, velhos e crianças.
Maurício estava andando por mais de 40 minutos e se lembrava de praticamente tudo, o que era incrível, pois só estivera lá duas vezes e fazia muito tempo. Finalmente ele foi chegando a uma parte da rua que ele não conhecia. Definitivamente, não. Continuou a andar. Era uma área mais residencial. Ainda assim, as pessoas que estavam fora o cumprimentavam com o mesmo entusiasmo que os outros. Certamente os tinha visto na parte mais central da cidade e por isso o conheciam.
Andou por mais uns 20 minutos e a havia poucas casas agora. Mais à frente, no entanto, já dava para ver um certo movimento. Apressou o passo e, de repente, sentiu uma estranhíssima sensação. Parecia a mesma vista que via da casa onde estava, porém à esquerda. Andou, agitado, e lá estava: a casa do Sérgio, onde estava hospedado. A rua era um círculo? Não podia ser, aquela era a rua mais reta que ele conhecia. Andou mais um pouco, as mesmas pessoas o cumprimentaram e, de novo e, pasmem, lá estavam o Andrade e seus amigos. De novo, puxou-o pelo braço e o fez sentar.
Assim que se recuperou, perguntou:
-A rua das Dálias é um círculo?
Todos riram e pensaram que ele estava brincando. Diante do olhar surpreso deles, levantou-se e foi caminhar novamente. Atrás de si podia ouvir o Andrade chamando-o de volta pelo nome de Júnior. Ele andou mais um pouco e quando viu a placa “Alameda das Rosas”, virou à esquerda. Caminhou alguns blocos e, enquanto passava, os moradores o cumprimentavam. Alguns deles pareciam os mesmos da Rua das Dálias, mas isso, agora, nem mais parecia estranho diante do resto. A alameda foi ficando vazia e, de repente, pôde ver algum movimento lá na frente. Sôfrego, apressou o passo.
E lá estava novamente a sua casa, ou seja, a casa do Sérgio. Caminhou novamente em direção ao Andrade que imediatamente veio recebê-lo, segurando seu braço. Queria respostas. Olhou sério para todos:  o Andrade, o Marco e o Souza. Aquilo era uma espécie de prisão? Como tudo voltava para o mesmo ponto? Os alimentos, as coisas em geral, como chegavam até eles? Como sobreviviam? Eles realmente conheceram os pais do Sérgio? E o próprio Sérgio?
O Souza tomou a palavra. Disse que as coisas estão sempre ali, nunca precisaram buscar nada. Os alimentos estiveram sempre lá. Os pais do Sérgio eles conheciam muito bem porque todos descreviam como eles eram, mas nunca os tinham visto antes. Nem o Sérgio, embora era como se eles o conhecessem, tanto tinham ouvido falar dele.
Não entendiam por que o Júnior estava tão assustado, ele nunca tinha sido assim. Foi então que o Marco sugeriu que o Júnior - meu nome não é Júnior, repetia o Maurício - fosse dormir. Normalmente essas crises passam após um bom sono.
Sem outra alternativa e duvidando que pudesse pegar no sono diante de tanta ansiedade, ele se recolheu. Ao contrário do que imaginava, assim que abriu a porta, sentiu um torpor enorme e foi para a cama.
O Maurício acordou na manhã seguinte. Não estranhou o lustre, nem o quarto, nem nada. Tomou café, saiu pela rua, encontrou-se com o Andrade e com outros. Sentia-se bem naquela cidade fechada, em que tudo estava pronto, tudo certo, sem surpresas. Uma cidade feliz, a Morada das Flores. Nunca tinha ouvido falar de nenhum Maurício, só conhecia seus amigos de todos os dias.
Júnior estava feliz e não trocaria sua cidade por nenhuma outra no mundo, mesmo porque não havia outras cidades no mundo. O mundo todo era ali.
 

 
REALISMO MÁGICO
 
A principal particularidade desta corrente literária é fundir o universo mágico à realidade, mostrando elementos irreais ou estranhos como algo habitual e corriqueiro. Além desta característica, o realismo mágico apresenta os elementos mágicos de forma intuitiva (sem explicação).
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Published on e-Stories.org on 08/08/2016.

 
 

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